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Argentina na semi: os novos Pumas são muito mais do que “garra” e “huevos”

UOL Esporte

Foto: Michael Steele/GettyImages

Foto: Michael Steele/GettyImages

(Juan Martín Fernández Lobbe lidera festa argentina após vitória contra a Irlanda)

Ver a Argentina classificada para a semifinal desta Copa do Mundo de Rúgbi, ao lado das bicampeãs mundiais Nova Zelândia, Austrália e África do Sul – eliminando todas as seleções da Europa – pode surpreender quem não tem acompanhado os Pumas nos últimos anos.

A seleção que despachou a Irlanda nas quartas-de-final (43-20) e que vai encarar a Austrália no próximo fim de semana ainda é marcada pela raça e doação em campo. Só que os Pumas atuais têm uma nova mentalidade, sabem manejar os jogos de outra forma e são ousados e precisos em cada execução.

É um novo estilo de jogo. Bem mais parecido com o dos outros três gigantes do hemisfério sul, todos ainda vivos na luta pelo título.

Desde que os Pumas entraram para o Tri Nations em 2012 (formando o novo Rugby Champioship), não tiveram alternativa: foi preciso aplicar um rúgbi mais aberto, com uma postura mais ofensiva. Ou buscavam esse novo caminho, ou nunca seriam páreos para jogos anuais contra as potências do sul: All Blacks, Wallabies e Springboks.

Foi um longo processo de desconstrução. Vários dos grandes jogadores argentinos, por atuar na França e na Inglaterra, estavam acostumados com um estilo mais tradicional (e menos explosivo) de rúgbi. O time também precisou respeitar sua inferioridade, aceitando o fato de que tomariam muita “pancada” para colher frutos mais tarde.

Em 2012 e 2013, os Pumas jogaram 12 partidas de Rugby Championship e não venceram nenhuma. As primeiras vitórias contra Austrália e África do Sul – em toda história, aliás – só vieram em 2014 e 2015.

A frase de Juan Martín Fernández Lobbe (Puma desde 2004 e destaque neste Mundial) é clássica: “Sempre disse que preferia perder para os All Blacks a ganhar de qualquer outro time”. É nessas horas que se aprende. E os Pumas estavam dispostos a isso.

A seleção que chega com moral nesta semifinal está sendo construída desde 2009. Lá atrás, começava para valer um novo projeto rúgbi argentino, que aproveitou a base de 500 clubes amadores (e uma longa história de devoção ao esporte) para lapidar talentos em centros de treinamento de alto rendimento.

Os resultados desse trabalho não são mera empolgação ou falácia. Neste Mundial, eles já podem ser comprovados em números. Ninguém fez mais pontos que a Argentina na fase de grupos (179), nem mesmo a África do Sul (176) e a Nova Zelândia (174). A Argentina também anotou 22 tries na fase inicial, três a menos que os All Blacks, e liderou várias estatísticas ofensivas: metros conquistados (2.687), offloads (50) e quebradas de defesa (46).

É preciso estar bem preparado fisicamente para isso. Já parou para pensar na quantidade de contusões do Mundial (perto de 50) e no número de lesões sérias dos Pumas (nenhuma)? Não dá para dizer que isso é apenas sorte.

Também não foi obra do acaso contar com o treinador neozelandês campeão do mundo em 2011, Graham Henry, como parte da comissão técnica, neste processo de reinvenção do rúgbi argentino. Henry chegou com o cargo de “supervisor técnico”, com o objetivo de melhorar a qualidade (individual e coletiva). Um trabalhoso, mas necessário caminho para ir mais longe. O neozelandês começou uma revolução na forma de pensar e jogar dos argentinos. Henry deixou um legado.

Com mais técnica, os Pumas só melhoram pontos onde já eram referência, como o forte scrum e a valente defesa. No ataque, se tornaram mais ariscos, inteligentes e perigosos do que nunca.

Para chegar lá, também foi preciso renovar os líderes.

Daniel Hourcade treinou o selecionado juvenil da Argentina, passou pela seleção de Sevens e ainda fez parte da comissão técnica de Portugal no Mundial de 2007 antes de assumir os Pampas XV. Este foi nome dado ao time de desenvolvimento dos Pumas, uma espécie de equipe “B”. Hourcade foi o coordenador do projeto, que preparou e revelou vários argentinos para o time principal.

Só em novembro de 2013 ganhou o posto de head coach dos Pumas. De lá para cá tem liderado essa nova.

O capitão e hooker Agustín Creevy também foi um “achado” após a brilhante carreira do antigo camisa 2 Mario Ledesma (hoje a cargo do “inimigo” da semifinal, como treinador de forwards da Austrália). Creevy é carismático e às vezes “cabeça quente” demais, mas faz o papel de capitão com maestria: chama a responsabilidade, nas ações e nas decisões e sabe puxar para cima um time cheio de jovens. Dez jogadores do elenco atual têm menos de 25 anos.

A última (e não menos importante) mudança nos Pumas foi a mentalidade. E ela não veio de uma crença “sobrenatural” ou de uma imensa vontade de vencer. Ela surge fortalecida em todo este trabalho feito até aqui. Degrau por degrau. A confiança dos argentinos foi aumentando com consistência. Hoje, ela pode ser vista em cada lance do jogo. Tanto na defesa, como já era mais comum, como no ataque, esta nova arma, eficiente e bem afiada.

Hourcade pede aos jogadores o que eles podem fazer. Não o contrário. E é assim, baseado em suas fortalezas, que os Pumas se propõem a assumir riscos (pensados e treinados). Aos poucos, o nível vai subindo.

É por tudo isso que não foi a garra, a raça, nem os “huevos” que trouxeram os Pumas até aqui. Eles estão presentes, claro, pois fazem parte da essência do rúgbi argentino e da formação desses jogadores, desde pequenos. A cena do hino contra a Irlanda, com todos emocionados, mostra bem isso. Sempre foi assim (não é nenhuma uma novidade), e sempre será.

O que mudou agora é o que acontece depois do hino. A força física e mental dos jogadores já atingiu um novo patamar. Para a alegria do rúgbi argentino, a Copa do Mundo 2015 não é o fim deste trabalho – independente do que aconteça contra a Austrália. É apenas o começo de uma nova fase.

Foto: Phil Walter/Getty Images

Foto: Phil Walter/Getty Images

(Tries de pontas, como Juan Imhoff, comprovam a revolução do ataque argentino)